terça-feira, 5 de maio de 2009

Esperanza por Spalding

Lançado em 2008 pela gravadora Heads Up, Esperanza é o segundo álbum da baixista e cantora Esperanza Spalding como líder. Nascida em 1984, em Portland, no estado americano de Oregon, Spalding teve contato com o baixo acústico pela primeira vez aos 15 anos de idade e com meses de prática foi considerada um prodígio. Em 2005 já era admitida como instrutora na Faculdade Berklee de Música em Boston. No ano seguinte lançou seu primeiro álbum liderando o seu trio de jazz. Em seu segundo e mais recente trabalho, intitulado Esperanza, Spalding atua com diversas formações instrumentais que abrangem o duo, o trio, o quarteto e o quinteto (se não contarmos as vozes adicionais em algumas faixas), o que permite um panorama multifacetado ao álbum, que conta ainda com a líder cantando em diferentes idiomas: português, inglês, espanhol, além do idioma característico do jazz, o scat singin'. Mesmo para quem não é tão aficionado por vocal jazz, como eu, este álbum é altamente recomendável e pode se tornar algo difícil de parar de ouvir. Descubra o porquê no desenrolar desse texto.

"Ponta de Areia", composição de Milton Nascimento e Fernando Brant, é a faixa de abertura do álbum, revelando desde o início que a concepção de todo o trabalho está em conciliar jazz com um toque de latino-brasilidade. A seção rítmica merece muito do crédito por essa canção ser executada de maneira tão bem sucedida, uma vez que o percussionista Jamey Haddad proporciona o balanço requerido, o baterista Otis Brown marca o tempo sem grandes variações, mas é a sintonia e a harmonia entre o piano de Leo Genovese e o baixo de Esperanza Spalding que faz o favorável diferencial. Há uma complementaridade entre os dois instrumentos que dá uma maior consistência à canção, como pode se perceber tanto na condução rítmica quanto no solo de Genovese. Como se não bastasse tudo isso, ainda há a bela voz adaptável de Spalding, que consegue variar competentemente entre os tons mais graves e os agudos. Cantando em língua portuguesa, Spalding não conseguiu se livrar do sotaque inglês, e curiosamente sua pronúncia remete, por vezes, ao português falado na Europa e não no Brasil.

Em "I Know You Know" o baixo de Spalding deixa bem claro a marcação do tempo, o qual é seguido com precisão por Brown na bateria e Haddad com sua percussão. Cabe ao piano de Genovese fazer a dupla função de acompanhar a seção rítmica em um primeiro momento e, a partir daí, expandir o tema melódico em acompanhamento ao canto de Spalding, enquanto pontua cada verso da composição. O tema da canção é uma mulher que não cansa de declarar o seu amor em um refrão grudento ("You already know/ But I'll sing it again/ I love you babe/ And nothing/ Will take me away/ I know that you know ...") a um homem hesitante e inseguro com o qual já teve um relacionamento no passado. A interpretação vocal de Spalding é cheia de um balanço contagiante que tempera a canção com uma vibração repleta de qualidades.

"Fall In" é uma balada romântica conduzida pelo piano de Genovese tendo unicamente como acompanhamento o canto vocal de Spalding, que por sua vez demonstra muita consistência no uso de sua voz. O refrão ("Don't worry if we fall in love/ We will never touch the ground/ Just fall into a dream"), bem como outras estrofes da letra, revela uma voz apaixonada disposta a convencer (e a se convencer) a viver plenamente o seu amor.

A canção "I Adore You" é ritmicamente levada pela percussão de Haddad em batidas tipicamente afro-latinas combinadas à bateria cheia de swing de Horacio Hernandez, o qual consegue tirar um som mais dançante de seu instrumento, além das vozes adicionais ao canto principal de Spalding, que são: Gretchen Parlato, Thereza Perez e Otis Brown. Apesar de cantada, a canção não tem uma só palavra, pois as vocalizações são de improvisos ao estilo scat singin' latinizado. Destaca-se mais uma vez a complementaridade entre o baixo de Spaldinge o piano de Genovese criando uma unidade consistente tanto quando ambos trazem seus instrumentos para o primeiro plano da canção durante o dueto sem canto, quanto quando fazem o acompanhamento às vozes que dão energia e impulsionam o trabalho.

"Cuerpo y Alma" é a versão traduzida para a língua espanhola de "Body & Soul", composta por Green, Heyman e Sour. Esse standard do jazz começa com uma introdução do baixo de Spalding, que dita o ritmo para a entrada da bateria de Brown e do piano de Genovese. A formação em trio funciona muito bem nesta faixa, porque todos os instrumentos encontram seus espaços, o que proporciona uma sinergia harmônica, tal qual se pode perceber nos momentos em que o baixo de Spalding assume o papel de protagonizar as ações na canção, ou quando o Genovese dedilha o seu piano com leveza e fluidez. Cantando em um espanhol muito bom, Spalding faz uso de um díficil recurso que é segurar as notas agudas prolongando as sílabas tônicas das palavras ao final dos versos. O resultado é um dos momentos mais bonitos do álbum.

A canção "She Got to You" é a mais pop do álbum com o sax alto de Donald Harrison ao estilo smooth pontuando os versos cantados por Spalding. A utilização do sopro no álbum foi introduzida apenas na sexta faixa, mas não foi bem aproveitada, porque não há nenhum momento inspirado do saxofonista nesta canção, afinal, a melodia faz uso apenas de fraseados curtos e repetitivos. Apoiando-se na extensão vocal de Spalding, essa canção parece ter sido produzida para tocar nas rádios FM ou para preencher trilhas sonoras de novelas ou seriados de TV. Talvez tendo percebido como o sax de Harrison foi mal
aproveitado, a baixista já usou outros formatos para o grupo em suas apresentações, como a substituição do saxofone por uma guitarra, o que melhorou consideravelmente a canção. A versão do álbum, no entanto, é dispensável.

"Precious", apesar de também soar um tanto pop, tem uma influência de soul music que a torna muita melhor que a canção anterior. O baixo bem marcado de Spalding, acompanhado de perto pela bateria de Brown, encontra um belo complemento no som cristalino com uma certa vibração do Wurlitzer, uma espécie de piano eletrônico, tocado por Genovese. As vozes adicionais foram todas muito bem colocadas para expressar a emoção de cada parte da canção, passando de um momento mais contemplativo até um ponto mais vibrante.

O baixo pulsante de Spalding é a chave que sustenta "Mela", a oitava faixa do álbum. O canto dessa vez é usado tão somente como um instrumento, uma vez que não há palavras para serem cantadas. A voz de Spalding encontra, em um primeiro momento, um complemento no trompete de Ambrose Akinmusire, que por sua vez em seu primeiro solo já ganha o primeiro plano com uma atuação destacada. A musicalidade brasileira está na base dessa composição que conta com alguns dos melhores solos de baixo de Spalding, bem como com o destacado rigor estilístico de Hernandez na bateria. Certamente é um
dos mais relevantes momentos desse álbum ao agregar o trompete criativo de Akinmusire ao trio base formado pelo baixo, pelo piano e pela bateria.

"Love in Time" é uma balada ao melhor estilo vocal jazz. O baixo marca o tempo e o piano é um mero acompanhante para a voz de Spalding esbanjando uma sensualidade provocadora. Já "Espera" trata da retomada da confiança após a quase perda da esperança cantada com muito balanço por Spalding. A percussão de Haddad, a bateria de Brown e o baixo de Spalding marcam o ritmo com uma batida que em muitos momentos se assemelha à marcação do reggae, porém um pouco mais rápida. Genovese, por sua vez, tocando um Fender Rhodes faz tanto o complemento ao baixo como é o acompanhamento para a voz.

"If That's True" é a única canção totalmente instrumental do álbum. Ao piano Genovese introduz o tema central da canção, que é logo seguido e expandido pelo sax alto de Harrison, enquanto o baixo de Spalding pulsa com intensidade. Em seguida é o trompete de Akinmusire que toma a condução da melodia, até o piano de Genovese passar da função de acompanhamento para o primeiro plano da canção. Em todos os momentos em que os sopros ou o piano ganham o destaque maior durante a execução de seus temas, é o baixo de Spalding que está vivo como um coração a bombear notas musicais para o quinteto, tanto que seu desempenho é fundamental para marcar não apenas o tempo, mas também para reger a entrada dos demais instrumentos, bem como para guiá-los em seus solos.

O álbum encerra com uma belíssima execução de "Samba Em Prelúdio", composição de Vinicius de Moraes e Baden Powell. Do violão fica encarregado Nino Josele, enquanto Spalding canta cada verso em um português perfeito, que impressiona, principalmente se compararmos com a primeira faixa desse álbum. O dueto de baixo e violão e a exuberante interpretação vocal de Spalding fazem dessa canção o momento mais tocante do álbum. Qualquer fã de bossa nova não conseguirá ouvir essa faixa apenas uma vez.

Esperanza Spalding é merecidamente um dos nomes mais destacados da atual cena jazzística ao conciliar a influência da música brasileira e afro-cubana ao seu universo sonoro. Se por um lado sua voz de contralto e suas composições românticas atraem um público não restrito ao jazz, sua performance como baixista já lhe rendeu a nomeação como primeira "Estrela em Ascensão" pela revista DownBeat em 2008. Como demonstrado em Esperanza, Spalding é uma figura importante para entender o jazz dos anos 2000 e do século XXI, portanto ainda muito deveremos ouvir de sua boca e de seu baixo. De minha parte, fico com a esperança de vê-la se desenvolver ainda mais como artista sem abdicar de sua veia jazzística para incorrer em caminhos que conduzem a uma música de qualidade duvidosa aquém de sua capacidade, o que vem a culminar em um pop sem graça, como fez, infelizmente, George Benson no passado.

Todos os músicos que participaram do álbum:
Esperanza Spalding: vocais, baixo;
Leo Genovese: piano, Wurlitzer (7), Rhodes (10);
Jamey Haddad: percussão (1, 2, 4, 6, 10);
Otis Brown: bateria (1, 2, 5, 7, 9, 10, 11), background vocals (4, 7);
Gretchen Parlato: background vocals (1, 4);
Theresa Perez: background vocals (4);
Horacio Hernandez: bateria (4, 6, 8);
Donald Harrison: saxofone alto (6, 11);
Ambrose Akinmusire: trompete (8, 11);
Nino Josele: violão (12).

Faixas de Esperanza:
01. Ponta de Areia [Nascimento, Brant] 5:39
02. I Know You Know [Spalding] 3:46
03. Fall In [Spalding] 3:57
04. I Adore You [Spalding] 7:27
05. Cuerpo y Alma (Body & Soul) [Green, Heyman, Sour] 8:01
06. She Got to You [Spalding] 4:29
07. Precious [Spalding] 4:24
08. Mela [Spalding] 6:57
09. Love in Time [Spalding] 5:47
10. Espera [Spalding] 4:40
11. If That's True [Spalding] 7:33
12. Samba Em Prelúdio [de Moraes, Powell] 5:11

Vídeo com a versão de estúdio de "Ponta de Areia":



Vídeo de apresentação de "Ponta de Areia" no Tim Festival 2008 com participação de Chico Pinheiro:




Ouça um pouco do álbum na amazonmp3:



Comprar o álbum ou mp3 downloads?

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Documentário Icons Among Us

Dirigido por Michael Rivoira, Lars Larson e Peter J. Vogt, produzido por Paradigm Studio, o documentário Icons Among Us: Jazz in the Present Tense (Ícones Entre Nós: o Jazz no Tempo Presente, em tradução literal, porém comercialmente outro nome poderá ser utilizado) divide-se em quatro episódios e aborda o jazz produzido no século XXI, ou seja, uma temática totalmente condizente com este blog.

Quando lançado em 2001, o documentário Jazz do diretor Ken Burns recebeu muitos elogios e teve o seu mérito reconhecido por ser a melhor série sobre o gênero já produzida, porém, ainda assim, deixou algumas lacunas por pouco abordar a cena jazzística dos anos 1970 em diante. Apenas no último dos 12 episódios há uma breve referência aos músicos dos anos 1990 e 2000. Agora é a vez de Rivoira, Larson e Vogt darem continuidade a essa história, mostrando como Matthew Shipp, Nicholas Payton, Avishai Cohen, Terence Blanchard, Jason Moran e muitos outros seguem em frente com o legado do jazz e se transformam em ícones entre nós.

A série teve início com o primeiro episódio intitulado "Quiet Revolution" exibido no canal de TV The Documentary Channel, infelizmente apenas para os Estados Unidos. Exibido semanalmente, o documentário terá sequência com "12 Notes in Realtime", "Utopia" e encerra com "Everything Everywhere". Para promover a série, vários concertos serão apresentados entre abril e maio deste ano em cinco cidades americanas: Seattle, Austin, Chicago, Boston e Nova Orleans.

Aos fãs brasileiros de jazz, bem como a todos os não-residentes nos Estados Unidos, resta esperar pelo televisionamento em alguma rede local ou pelo lançamento do documentário em DVD ou Blu-ray para que possamos acompanhá-lo.

Por ora, assistam a esses vídeos de Icons Among Us:







Visite o site de Icons Among Us:
http://www.iconsamongus.com/

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Gilfema + 2

Lançado em outubro de 2008 pela gravadora ObliqSound, o álbum Gilfema + 2, reúne competentes músicos de diferentes nacionalidades como o guitarrista Lionel Loueke, do Benin; o baixista Massimo Biolcati, sueco de criação, mas nascido na Itália; e o baterista Ferenc Nemeth, da Hungria. Esse trio forma o Gilfema, cujo nome incorpora parte dos nomes de seus integrantes: Lionel GILles Loueke, FErenc Nemeth e MAssimo Biolcati. Adicionando as sonoridades de suas origens ao jazz, o grupo convidou mais dois músicos para esse trabalho: a clarinetista israelense Anat Cohen e o clarinetista baixo americano John Ellis. Entre o folk, a world music e o jazz, o Gilfema é um grupo criativo que explora muito bem o talento de seus intérpretes/compositores em novas canções, que se por um lado pode confrontar o gosto jazzístico dos mais puristas, por outro lado desperta o interesse dos fãs um pouco mais receptivos a ritmos africanos e inventivos em geral.

Em "Twins", a primeira faixa do álbum, o tempo marcado pelo baterista Ferenc Nemeth, pelo baixista Massimo Biolcati e pela guitarra rítmica de Lionel Loueke evidenciam a influência da música africana no som do grupo. O canto repetitivo de Loueke no idioma fon, natural do Benin, no início da canção é quase hipnótico, enquanto com sutileza Anat Cohen estabelece uma linha melódica com seu clarinete. A partir da mudança de andamento que é dada à canção, o ritmo ganha mais liberdade e balanço, liberando Loueke para, além de cantar, também solar com sua guitarra, bem como para fazer um rico dueto com o clarinete baixo de John Ellis.

"Question of Perspective" introduz um tema principal executado por Loueke na guitarra e em vocalizações, que ganha a adição de Biolcati no baixo, de Nemeth na bateria e de Ellis no clarinete baixo. A partir desse mote desenvolve-se a melodia tal como se ouve no delicioso solo de Loueke, tocado com muita clareza em uma perspectiva absolutamente linear.

A musicalidade africana volta ao primeiro plano em "Your World", cuja condução do ritmo por Biolcati no baixo e por Nemeth na bateria remetem a um balanço que aproxima o som do grupo a uma sonordade com um quê de reggae. A guitarra de Loueke na maior parte da canção se integra à base rítmica, enquanto o clarinete de Cohen assume a frente da condução melódica em solos ou em bem arranjados duetos com a guitarra. É difícil não se deixar contagiar pelo ritmo e pelo canto de Loueke, que são a cara dessa canção.

Possivelmente "Salomé" com a guitarra com efeito wah-wah de Loueke, o clarinete baixo melodioso de Ellis, o baixo exuberante de Biolcati e a precisão de Nemeth na bateria seja a melhor faixa de todo o álbum. A canção foi construída de modo que os instrumentos de cordas e de sopro assumam em determinado momento o primeiro plano e que se apóiem mutuamente no desenvolvimento do som. O resultado é um primoroso exercício jazzístico de aliar a suavidade de Ellis com a impulsividade de Loueke, que em determinado momento faz sua guitarra soar quase como um teclado, enquanto Biolcati desloca o seu baixo do fundo para o primeiro plano do estúdio de gravação.

O canto de Loueke e a ocarina tocada por Ellis são os principais destaques de "Lonlon Gnin", outra faixa na qual a musicalidade originária da África recebe os principais holofotes. O baixo quase hipnótico de Biolcati e a marcação rítmica precisa de Nemeth formam o plano de fundo para que a canção se desenrole naturalmente.

"Morning Dew" inicia com um ritmo repetitivo marcado por Nemeth, enquanto o clarinete baixo de Ellis toca espaçadamente a mesma nota, aos quais junta-se primeiro o baixo de Biolcati e depois a guitarra de Loueke. A canção tem um desenvolvimento lento, que vai ganhando impulso com a reintrodução do clarinete baixo de Ellis, que vai direcionando a melodia a ser seguida. O tema que ganha vida é bastante bonito e tocado com muita clareza nos solos e nos duetos de guitarra e clarinete.

"Festa" tem um ritmo cheio de balanço que lembra o samba, porém conduzido pelos tom-tons, pela caixa, pelo surdo e pelo chimbal executados por Nemeth, bem como pelo baixo de Biolcati fornecendo a cobertura para o desenvolvimento da melodia pela guitarra e pelo canto de Loueke no idioma fon.

O ritmo acelerado, quase descompassado, introduzido pela bateria de Nemeth em "Cove" induz Ellis a tocar o seu clarinete baixo cada vez mais rápido para estabelecer a segunda parte da canção, que é estruturalmente mais complexa, provocando em um determinado momento um contraponto interessante entre a guitarra de Loueke e o baixo de Biolcati, como se os músicos estabelecessem um desafio mútuo. A sonoridade se constitui em uma sessão de freebop repleta de criatividade e energia. A forma abrupta como a canção é encerrada denuncia um grupo versátil que tem muito a explorar nessa linguagem jazzística. Certamente essa faixa conquista o status de um dos pontos altos do álbum.

"One's Mind's Eye" é uma balada de ritmo suave conduzido por Nemeth repercutindo a caixa de sua bateria com baquetas tipo vassourinha, enquanto Cohen com seu clarinete, Loueke com sua guitarra e Ellis com seu clarinete baixo assumem o papel de desenvolver a melodia. A medida que a canção começa a crescer em intensidade e Nemeth passa fazer uso maior dos pratos de seu instrumento, o baixo de Biolcati também vai ganhando mais espaço e se destacando dentro da obra. O destaque maior, porém, fica para a forma como a melodia é trabalhada em função do timbre diferenciado dos sopros e das seis cordas.

A linguagem do bop volta a ser falada pelo grupo em "Master of the Obvious", uma canção na qual o clarinete baixo de Ellis e o clarinete de Cohen travam um diálogo cheio de balanço, enquanto o baixo de Biolcati e a bateria de Nemeth proporcionam o ritmo swingado necessário para a harmonia da canção. A introdução da guitarra com wah-wah de Loueke ganha o primeiro plano na execução dessa faixa, uma vez que a sua entrada altera o dinamismo do trabalho e produz um efeito positivo refletido na força que a canção ganha perto de seu final.

O trio Gilfema tem recebido ótimas críticas nas publicações especializadas em jazz, mesmo se tratando de um projeto paralelo, que infelizmente não deverá ter continuidade, uma vez que a carreira solo de Lionel Loueke está em seu melhor momento e tanto o baixista quanto o baterista integram o grupo do guitarrista. O mérito do Gilfema é dar vazão às composições de Massimo Biolcati e de Ferenc Nemeth, afinal o grupo de Loueke toca apenas composições próprias deste, que foi escolhido como "Estrela em Ascensão (Rising Star)" na categoria guitarrista na premiação de 2008 da revista DownBeat. A adição dos sopros ao trio original ocasionou mais versatilidade à sonoridade do grupo, uma vez que a guitarra ganhou mais opções para trabalhar em belos e agradáveis duetos. Por essas razões, Gilfema + 2 é um álbum altamente recomendável.

Todos os músicos que participaram do álbum:
Lionel Loueke: guitarra, vocais;
Massimo Biolcati: baixo
Ferenc Nemeth: bateria
Anat Cohen: clarinete
John Ellis: clarinete baixo, ocarina

Faixas de Gilfema + 2:
01. Twins [Loueke] 5:20
02. Question of Perspective [Nemeth] 4:13
03. Your World [Loueke] 5:36
04. Salomé [Biolcati] 6:04
05. Lonlon Gnin [Loueke] 3:45
06. Morning Dew [Nemeth] 6:28
07. Festa [Nemeth] 4:23
08. Cove [Loueke] 5:22
09. One's Mind's Eye [Biolcati] 7:19
10. Master of the Obvious [Biolcati] 4:13

Veja o vídeo do Gilfema tocando "Question of Perspective":


Ouça um pouco do álbum na amazonmp3:


Comprar o álbum ou mp3 downloads?

segunda-feira, 30 de março de 2009

Brad Mehldau Trio Live

Gravado entre 11 e 15 de outubro de 2006 no clube Village Vanguard em Nova York, e lançado em 2008 pela gravadora Nonesuch, Live do pianista Brad Mehldau é um álbum duplo que transita entre composições do rock dos anos 1990, canções populares, standards do jazz e obras do próprio líder do trio. Muito versátil, Mehldau já trabalhou com importantes nomes do jazz como Pat Metheny, Charlie Haden, Lee Konitz, Wayne Shorter; devido ao seu estilo mais intimista e por sua preferência pelo trio de jazz foi comparado a seu influenciador Bill Evans; também já fez parceria com o soprano Renée Fleming e consegue articular um bom diálogo entre o rock n’ roll e o jazz sem transformar isso em fusion. Neste álbum, o pianista demonstra sua qualidade em um repertório que apresenta surpresas e agrada o ouvinte ao mesclar lirismo e intensidade ao longo dos dois CDs que compõe Live.

O primeiro CD tem início com uma breve introdução, na qual o pianista Brad Mehldau apresenta o baixista Larry Grenadier e o baterista Jeff Ballard. Na sequência, o trio começa a tocar “Wonderwall” de Noel Gallagher do grupo de rock inglês Oasis. De início o grupo é bem fiel à composição original, uma vez que Mehldau conduz a melodia por meio dos fraseados curtos que tornaram a canção popular, enquanto Ballard e Granadier determinam o ritmo. Porém, como esta é uma versão jazzística, logo Mehldau se deixa levar pela improvisação e os fraseados antes curtos transformam-se em estruturas longas e mais complexas com contagiante balanço que a essa altura tem a seção rítmica mais solta e tocando com a mesma intensidade. Quando o piano retoma o tema que serve de refrão, o baixo e a bateria permanecem com o ritmo swingado que dá muito mais riqueza à canção. O resultado final é uma transformação positiva e empolgante.

Em “Ruby’s Rub” o trio brinca com o ritmo da canção acelerando e desacelerando o andamento. Mehldau ao piano dita o tema melódico e a partir dele cria variações que se tornam mais e mais rápidas, enquanto é apoiado pelos enérgicos e precisos Grenadier no baixo e Ballard na bateria. A canção conta com um longo e vigoroso solo de piano que contagia o ouvinte que tenta acompanhar cada nota tocada com muita rapidez. Uma pena que essa boa harmonia se perca ao se aproximar o final da canção e os músicos seguem rumos diferentes.

O concerto prossegue com uma versão para “O Que Será” de Chico Buarque, cuja melodia, inicialmente, é seguida fielmente por Mehldau ao piano. Pois é justamente na improvisação do pianista que a canção vai ganhando mais vida, enquanto Grenadier e Ballard dão seguimento ao ritmo inicial e, posteriormente, também vão criando um novo sentido para a base que dá a sustentação a Mehldau. Este, aliás, mostra ser um grande improvisador ao conduzir a melodia por caminhos bem diferentes dos propostos inicialmente, mudar completamente o andamento da canção e ir aos poucos inserindo as notas que formam o tema principal até que o trio retome o ponto de partida e dê por encerrada a canção.

“B-Flat Waltz” é uma canção que em um primeiro momento se sustenta em uma melodia agradável de acompanhar, resultante do bom trabalho de Mehldau ao piano que em dado instante parece tocar para si ao estabelecer uma melodia com muitas facetas, uma vez que o pianista consegue transitar de uma passagem mais “dançante” para outra bastante introspectiva e complexa. O resultado é entusiasmante.

Dando prosseguimento ao seu diálogo com o rock, o trio executa “Black Hole Sun” composta por Chris Cornell e originalmente gravada pelo grupo Soundgarden. Nesta versão com mais de 23 minutos, o maior destaque inicial fica com o baixista Grenadier, que é o responsável por manter o ritmo lento e bem marcado conforme a composição original. Mehldau ao piano se encarrega de executar o tema principal que também é base para o refrão, enquanto Ballard na bateria acompanha e divide a atenção com o pianista tanto nas passagens lentas quanto nas partes de maior intensidade da canção. Entre várias mudanças de andamento, o resultado é uma bem sucedida transposição do rock para o jazz, algo que nem sempre é alcançado.

Em “The Very Thought of You”, Mehldau tem espaço para demonstrar todo o seu lirismo com o trio executando uma balada intimista. Nesta faixa a referência ao estilo pessoal de Bill Evans torna-se muito evidente, o que justifica algumas comparações que vem sendo feitas ao longo dos anos. Com uma técnica muito boa e uma interpretação brilhante, Mehldau realiza um grande trabalho nesta composição de Ray Noble, na qual a performance do pianista sugere ao longo da canção passagens contidas e repletas de sentimento até outras de calor mais intenso e apaixonado. Uma curiosidade: reparem que logo aos 39 segundos alguém deixa cair um objeto de metal no palco e isso causa um ruído indesejado na gravação.

O segundo CD do álbum inicia com “Buddha Realm”, um dos melhores momentos da apresentação. Com um ritmo cheio de balanço e bem marcado pelo baixo de Grenadier e pela bateria de Ballard, o pianista pode desenvolver o seu tema com um swing especial. Alternando graves e agudos em seu instrumento, Mehldau consegue um ótimo equilíbrio entre seguir o ritmo com a mão esquerda e desenvolver uma melodia cativante com a mão direita. Os solos de Mehldau acompanhados pela precisão de Ballard e por uma bem trabalhada base de Grenadier dão muita vivacidade à canção e triunfam ao mesclar jazz tradicional com a linguagem moderna.

“Fit Cat” se desenvolve sobre um tema introduzido por Mehldau ao piano e que é recorrente durante toda a canção, uma vez que os solos nascem daí. As improvisações do pianista são substancialmente os pontos altos até então. A partir da metade em diante, a mudança de andamento dada pelo trio à canção lhe confere uma cadência mais swingada em comparação ao que é inicialmente desenvolvido. A tônica da canção passa a ser a ótima integração e harmonia do trio, no qual cada integrante preenche o som em uma perfeita comunhão, o que resulta um agradável trabalho de equipe, tal como na velha citação literária: um por todos e todos por um.

A melodia suave e intimista de “Secret Beach” construída inteiramente no piano de Mehldau é a marca da canção. O trabalho da seção rítmica com Grenadier e Ballard é servir de apoio para que o pianista possa explorar a sua criatividade em um tema que começa tímido, mas que vai conquistando o ouvinte com cada nota bem colocada. A bela melodia desenvolvida por Mehldau é de tal modo envolvente, que vai em um crescendo tão sutil que cativa e ganha o seu público.

“C.T.A.”, composta por Jimmy Heath, tem no ótimo trabalho do baixista Grenadier um dos seus destaques, uma vez que seu solo é o mais empolgante da canção. Esbanjando qualidade, o trio consegue unir velocidade e técnica mantendo o balanço em um hard bop de muita categoria.

O standard “More Than You Know” traz a atenção novamente para o piano de Mehldau, que conduz uma melodia sentimental que dialoga muito bem com o baixo de Grenadier, uma vez que um preenche muito bem o espaço deixado pelo outro na execução da canção. Em seu solo, literalmente, afinal Mehldau não encontra o acompanhamento dos demais músicos, o pianista consegue preencher todos os espaços e definir um andamento romântico que dá muita sutileza e beleza à melodia.

O concerto e o álbum são encerrados com a canção “Countdown”, uma composição de John Coltrane, na qual cabe a Mehldau desenvolver uma intrincada melodia ao melhor estilo hard bop em alta velocidade, enquanto Ballard parece fazer sua bateria galopar e Grenadier acompanha tudo cobrindo as lacunas. O resultado final é muito bom, porque demonstra a habilidade de Mehldau em transpor os fraseados que se alternavam entre curtos e alongados no saxofone de Coltrane para o piano, gerando muito dinamismo e intensidade à canção.

Ousado ao reunir canções não comuns ao mundo do jazz em um álbum duplo, Brad Mehldau proporciona uma integração muito interessante entre linguagens diferentes como o jazz e o rock n’ roll. Em suas composições próprias, Mehldau mostra com mais desenvoltura a sua habilidade e consegue atingir os pontos mais altos neste álbum, ainda que suas versões para canções de outros compositores rendam momentos para uma audição de primeira qualidade. Necessária na coleção de qualquer jazzófilo interessado na música do século XXI, a obra de Mehldau está bem representada em Live.

Todos os músicos que participaram do álbum:
Brad Mehldau: piano;
Larry Grenadier: baixo;
Jeff Ballard: bateria.

Faixas de Live:
CD 1
01. Introduction [0:14]
02. Wonderwall [Gallagher] 8:44
03. Ruby's Rub [Mehldau] 13:07
04. O Que Será [Buarque] 10:37
05. B-Flat Waltz [Mehldau] 9:10
06. Black Hole Sun [Cornell] 23:30
07. The Very Thought of You [Noble] 13:03

CD 2
01. Buddha Realm [Mehldau] 11:59
02. Fit Cat [Mehldau] 10:40
03. Secret Beach [Mehldau] 11:35
04. C.T.A. [Heath] 16:16
05. More Than You Know [Eliscu, Rose, Youmans] 12:08
06. Countdown [Coltrane] 14:56

Ouça um pouco do álbum na amazonmp3:


Comprar o álbum ou mp3 downloads?

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Jíbaro de Miguel Zenón

Lançado em 2005 pela gravadora Marsalis Music, Jíbaro do saxofonista alto Miguel Zenón é formado por dez faixas inéditas que remetem à musicalidade de Porto Rico, país de origem do líder do grupo. Zenón vem ganhando elogios e espaço no jazz atual graças ao seu modo de tocar que reflete muita elegância e suavidade. Se pensarmos em duas escolas de sax que influenciaram e influenciam gerações de músicos de jazz, Zenón estaria mais para a sutileza de Lester Young do que para a impulsividade de Coleman Hawkins. Não deixe de ouvir Jíbaro, pois este é um álbum muito bom.

A primeira faixa do álbum é “Seis Cinco”, que logo de início já revela a influência da musicalidade porto-riquenha e latino-americana no trabalho de Miguel Zenón. O piano de Luis Perdomo soa efetivamente como um instrumento de percussão, tal como indica a origem do som do aparelho, uma vez que a condução rítmica é primeiramente levada por ele, até que se juntam Antonio Sánchez na bateria e Hans Glawischnig no baixo. O sax alto de Zenón parte de uma melodia simples baseada em curtos fraseados repetitivos, que se desenvolvem em um solo mais intrincado. Uma mudança de andamento traz o piano de Perdomo para o primeiro plano, enquanto o ótimo Sánchez e Glawischnig fazem o acompanhamento. Zenón retoma a musicalidade festiva de Porto Rico em seu sax alto para encerrar a faixa.

O tema iniciado por Perdomo ao piano em “Farjardeño” encontra o baixo bem marcado de Glawischnig e a bateria de Sánchez, que marca o ritmo com direito a paradinhas que indicam a entrada de Zenón, cujo solo de sax alto a partir dos dois minutos indica uma leveza musical muito linda. O saxofonista tem o mérito de desenvolver seus temas com sutileza e elegância que já lhe renderam comparações com o lendário Paul Desmond. Sem dúvida estamos diante de um talento. Por mais que o ritmo do trio que acompanha Zenón seja contagiante nessa canção, que o baixo de Glawischnig consiga acompanhar a nossa pulsação ou que a precisão de Sánchez nos leve, é difícil não focar a atenção no saxofonista que ganha a cena com a sua maestria.

“Punto Cubano” nasce da interação entre a seção rítmica (Perdomo, Glawischnig e Sánchez) e os fraseados curtos de Zenón. A partir daí, a canção se desenvolve em um bonito solo de piano de Perdomo, que se encerra ao encontrar o sax alto de Zenón, cujo solo tem um quê de lamento.

O fraseado de sax alto facilmente reconhecível no início de “Aguinaldo” torna essa canção uma candidata a possível stardard no futuro. Canções com temas fáceis de lembrar como “Caravan” ou “Love For Sale” rapidamente caem no gosto popular, mas apenas o tempo dirá se o mesmo acontecerá a “Aguinaldo”. O ritmo conduzido por Glawischnig no baixo e Sánchez na bateria é lento e claramente caribenho, no qual Zenón no sax alto alterna o tema tema principal da canção e solos mais desenvolvidos, enquanto Perdomo no piano faz um acompanhamento preciso. Porém, é apenas a partir dos solos de baixo e, posteriormente, de piano que a canção se transforma. Com a aceleração do ritmo, o sax alto de Zenón ressurge mais solto, mas mantendo o refinamento e o mesmo senso melódico que consagrou o músico porto-riquenho.

Em “Chorreao” o destaque fica para a precisa marcação rítmica de Sánchez na bateria, que faz a complementação ideal para os fraseados curtos e pontuais de sax alto de Zenón. Ainda que o tema seja repetitivo, o ritmo é contagiante e certamente agradará a todos que gostam de jazz com um tempero latino.

A partir de um sentimental solo de sax alto, Zenón começa “Enramada” pelo que parece ser o seu final, tanto que após uma breve parada logo após o solo, a canção recomeça com uma ambientação quase cool centrada na sonoridade do saxofone. Uma nova breve parada e um novo recomeço em uma canção que se reinventa em um suave e belo solo de piano de Perdomo. Outra breve parada e o recomeço é iniciado por Zenón que fecha a canção tal como começou. O resultado parece ser várias canções interligadas gravadas em uma mesma faixa do CD. Um ouvinte mais desatento poderia pensar que quatro faixas foram passadas em pouco mais de seis minutos.

“Villarán” aproveita o final da canção anterior, mas logo a partir de uma breve introdução do baixo de Glawischnig, o ritmo muda sua cadência, tornando-se mais pulsante, mas não rápido. O sax alto de Zenón dá o tema e Perdomo ao piano desenvolve-o, depois há uma troca constante entre ambos na condução melódica. Mudanças de andamento e ótimos solos fazem dessa uma das melhores canções do álbum.

Aproveitando a base rítmica de suas origens porto-riquenhas, Zenón com seu sax alto compôs “Llanera” como uma canção que evidencia a bateria de Sánchez e o baixo de Glawischnig, além de proporcionar um ótimo solo de piano para Perdomo e um contagiante solo para o próprio Zenón.

“Mariandá” parte de um ritmo lento e de uma melodia arrastada e fragmentada liderada pelo sax alto de Zenón, que a desenvolve a medida que a bateria de Sánchez, o baixo de Glawischnig e o piano de Perdomo encontram o seu caminho. A partir daí a interação entre o saxofone e o piano faz um dueto agradável, que culmina em momentos mais intimistas com mudanças de andamento e um final diferente do esperado.

A faixa que dá nome ao álbum, “Jíbaro, é também a última do CD. Partindo de um início mais alegre, no qual o piano de Perdomo está em primeiro plano, o baixo de Glawischnig deixa a sua marca com destaque e a bateria de Sánchez ressoa os pratos, o chimbal e o bumbo, a canção tem um ritmo mais sacolejante. Ao entrar, Zenón no sax alto desenvolve o tema principal da canção e assume a liderança nos caminhos da melodia. Nessa faixa, o saxofonista pode mostrar mais velocidade e capacidade de improvisação, o que não é tão evidente em outros momentos do álbum, uma vez que a marca de Zenón é o seu estilo suave e altamente melódico.

Mesmo sem contar com instrumentos típicos da música porto-riquenha, o quarteto de Miguel Zenón conseguiu transpor toda a musicalidade e festividade da música caribenha para o seu jazz. Jíbaro é um trabalho repleto de qualidade que agradará os fãs de jazz latino. Zenón é um importante nome no saxofone alto neste século XXI, pois seu estilo suave e melodioso não o fixa como um músico conservador e tampouco inovador.

Todos os músicos que participaram do álbum:
Miguel Zenón: saxofone alto;
Luis Perdomo: piano;
Hans Glawischnig: baixo;
Antonio Sánchez: bateria.

Faixas de Jíbaro:
01. Seis Cinco [Zenón] 5:45
02. Farjardeño [Zenón] 6:53
03. Punto Cubano [Zenón] 8:07
04. Aguinaldo [Zenón] 7:29
05. Chorreao [Zenón] 5:54
06. Enramada [Zenón] 6:11
07. Villarán [Zenón] 9:09
08. Llanera [Zenón] 6:18
09. Mariandá [Zenón] 5:47
10. Jíbaro [Zenón] 7:30

Ouça um pouco do álbum na amazonmp3:


Comprar o álbum?

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A estranha libertação de Dave Douglas

Lançado em 2004 pela gravadora Bluebird/RCA, Strange Liberation do trompetista Dave Douglas traz, além dos músicos habituais de seu quinteto, o guitarrista Bill Frisell como convidado. A adição deste é de grande importância para a qualidade do álbum, uma vez que muitas passagens foram pensadas para a guitarra como protagonista e não meramente como um incremento para acompanhar os sopros ou o Fender Rhodes. Por sua diversidade entre as vertentes do jazz, qualquer pessoa interessada em conhecer mais a sonoridade desenvolvida no século XXI deve ouvir o trabalho de Douglas e este álbum é uma boa dica para começar (ou continuar).

A primeira faixa do álbum é “A Single Sky”, uma canção curta com pouco mais de 2 minutos, que introduz o ouvinte à sonoridade do sexteto. Aí estão pontos altos que serão muito bem explorados em todo o álbum, como o baixo bem marcado de James Genus, os duetos bem arranjados entre o trompete de Dave Douglas e o sax tenor de Chris Potter, a guitarra de Bill Frisell surgindo como alternativa aos sopros. Apesar de curta, essa canção é repleta de possibilidades de audição, primeiro porque não desenvolve nenhum solo, depois deixa a vontade de querer ouvir mais, o que é subitamente cortado por um decrescendo que vai marcando a saída de Douglas, do Fender Rhodes de Uri Caine até deixar a última nota para as cordas de Frisell.

“Strange Liberation”, por sua vez, tem como destaque inicial o fraseado quase estridente do trompete de Douglas, enquanto a seção rítmica desenvolve um funky jazz cheio de balanço. O dueto entre Douglas e o sax tenor de Potter estabelece uma comunicação cheia de swing, responsável pelo estabelecimento do tema motriz da canção, que é igualmente recriada a seguir no dueto entre a guitarra de Frisell e o baixo de Genus, enquanto Clarence Penn e Caine acompanham tudo na bateria e no Fender Rhodes, respectivamente. Em determinado momento, o Rhodes de Caine deixa o papel de coadjuvante e passa a ser protagonista junto com Douglas e Frisell, sem que o tema principal da canção seja esquecido.

“Skeeter-ism” tem uma sonoridade nostálgica e sentimental, cujos duetos são os pontos de maior destaque. De início Douglas com seu trompete e Potter com seu clarinete baixo definem a direção melódica, enquanto o baixo de Genus e a bateria de Penn dão ritmo à canção. A guitarra de Frisell e o Fender Rhodes de Caine dão seguimento à sessão de ótimos duetos dessa faixa. Certamente esse é um dos pontos altos do álbum, pois essa é uma canção deliciosa de ouvir.

“Just Say This” tem no trompete de Douglas e na guitarra de Frisell as bases de seu som lento e introspectivo. A partir do acompanhamento de Caine, Genus e Penn, os solos de Douglas podem alcançar alturas ainda não buscadas antes e são esses agudos que servem como um belo contraponto ao sax tenor de Potter, que soa como se quisesse dizer belas palavras de amor. Em seguida, Frisell parece tomar conta do mesmo discurso para dar seguimento ao que vinha sendo desenvolvido pelos instrumentos de sopro. Ao tocarem juntos ao final da canção, podemos ter a certeza de quem eles conseguiram dizer – sem uma palavra – o que a composição trazia em seu título.

“Seventeen” é uma canção impetuosa com uma forte razão de ser no bebop. O baixo de Genus é marcado com intensidade e a bateria de Penn dá o ritmo por vezes quase frenético à canção, que se desenrola em solos enérgicos de sax tenor por Potter, de Fender Rhodes por Caine e, claro, de trompete por Douglas.

O diálogo minimalista entre a guitarra de Frisell e o Fender Rhodes de Caine serve como uma introdução ao tema melódico que é desenvolvido em “Mountains from the Train”. Enquanto esses instrumentos mais o baixo e a bateria dão o direcionamento intimista que a canção deve seguir, os sopros contribuem com o que vinha sendo construindo, apenas adicionando mais certeza nos rumos dessa experimentação musical.

“Rock of Billy” é centrada na guitarra de Frisell, que dá início à melodia, que tem prosseguimento com o Fender Rhodes de Caine e o trompete de Douglas. Apesar do título de muitos sentidos e dos primeiros acordes que podem enganar, o que se ouve é um hard bop de ótima qualidade com direito a bons solos como o de sax tenor de Potter e ao ótimo dueto de sopros com as seis cordas de acompanhamento.

O sax tenor de Potter e a guitarra de Frisell tocando em uníssono dão o mote a “The Frisell Dream”, uma canção com sólidas bases alicerçadas no marcante baixo de Genus e na bateria de Penn, cujo ritmo sustenta a melodia suave e ao mesmo tempo cheia de balanço que é conduzida ora pelo trompete de Douglas, ora pela guitarra de Frisell, ora pelo sax de Potter, enquanto os três não se juntam em harmonia para encerrar a canção.

“Passing Through”, com pouco mais de um minuto e meio, parece parte de uma canção descolada de seu contexto. Soa como um recorte desprendido de um princípio, no qual o trompete de Douglas sola pesadamente, enquanto tem o acompanhamento do baixo de Genus e da bateria de Penn que o ajudam a compor a atmosfera introspectiva.

O trompete com surdina de Douglas funciona como um chamado para os demais integrantes do grupo em “The Jones”. Estabelecendo um agradável ritmo com seu baixo, Genus proporciona, em conjunto com a bateria de Penn e o Fender Rhodes de Caine, um ambiente que permite o desenvolvimento de duetos muito bem articulados entre trompete e sax tenor, bem como o solo empolgante de teclado.

“Catalyst” encerra o álbum com uma forte referência ao fusion, uma vez que o baixo elétrico de Genus, a guitarra de Frisell e o Fender Rhodes de Caine se juntam à bateria de Penn para reviver as bases da sonoridade jazzística dos anos 1970. Com esse fundo, o que temos são solos livres e energizantes de sax tenor por parte de Potter e de trompete por Douglas.

Strange Liberation é um álbum multifacetado que percorre as muitas vertentes do jazz para criar a sua identidade. Além do talento de Dave Douglas como compositor e intérprete, que já recebeu o elogio (e ao mesmo tempo a pesada responsabilidade) de ser o trompetista que mais soa como Miles Davis atualmente, este disco tem um importante acréscimo ao contar com o músico convidado Bill Frisell, um dos principais guitarristas vivos do jazz, além do ótimo baixista James Genus que deixou sua participação marcada com louvor nas onze faixas desse álbum. Douglas é um nome que faz a diferença no jazz do século XXI, e o seu trabalho ajuda a definir rumos para a sonoridade do gênero.

Todos os músicos que participaram do álbum:
Dave Douglas: trompete;
Bill Frisell: guitarra;
Chris Potter: saxofone tenor, clarinete baixo;
Uri Caine: Fender Rhodes;
James Genus: baixo acústico e elétrico;
Clarence Penn: bateria, percussão.

Faixas de Strange Liberation:
01. A Single Sky [Douglas] 2:05
02. Strange Liberation [Douglas] 8:05
03. Skeeter-Ism [Douglas] 6:00
04. Just Say This [Douglas] 6:33
05. Seventeen [Douglas] 8:40
06. Mountains from the Train [Douglas] 5:15
07. Rock of Billy [Douglas] 5:57
08. The Frisell Dream [Douglas] 3:56
09. Passing Through [Douglas] 1:36
10. The Jones [Douglas] 4:28
11. Catalyst [Douglas] 5:08

Ouça um pouco do álbum na amazonmp3:


Comprar o álbum ou mp3 downloads?

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A temporada de mudanças de Brian Blade

Oito anos se passaram entre os lançamentos do álbum anterior e deste, Season of Changes, do baterista Brian Blade pela gravadora Verve em 2008. Durante esse período, Blade esteve ocupado tocando como sideman com Bob Dylan, Joni Mitchell, Kenny Garrett, Joshua Redman, Sam Yahel, Wayne Shorter. Ao retomar a carreira como líder, o baterista chamou antigos companheiros e renomeou o grupo para The Fellowship Band. O resultado está gravado neste ótimo álbum que consegue em alguns momentos ser jazz de alta classe e em outros momentos nem jazz ser. Musicalmente multi-influenciado, Blade nos apresenta um material inédito de ousadia e inventividade que o consolida como compositor e intérprete. Acredito que apenas o tempo e o desenrolar do século XXI serão capazes de dar o verdadeiro significado a Season of Changes.

O baixo de Chris Thomas tocando a mesma nota e a guitarra de Kurt Rosenwinkel deixando lacunas dão a introdução a “Rubilou’s Lullaby”, a primeira faixa do álbum. A bateria de Brian Blade prenuncia a entrada dos demais instrumentos à canção, como o piano de Jon Cowherd, que desempenha importantes papéis na condução e na passagem do sax tenor de Melvin Butler para o clarinete baixo de Myron Walden. A integração entre todos os instrumentos é total, tanto que ritmo e melodia estão muito ligados, tornando as participações de Walden e Butler não em solos, como o habitual no jazz, mas em um elemento em primeiro e segundo plano ao mesmo tempo. A sonoridade do grupo é progressiva e limítrofe ao empurrar as fronteiras do jazz para além.

Melvin Butler no sax tenor e Cowherd no piano estabelecem o motivo da canção “Return of the Prodigal Son”, que se desenvolve em um solo viajante de guitarra de Rosenwinkel, que encontra o solo enérgico de Butler, cuja sonoridade aqui o aproxima do hard bop sessentista e narra os percalços da personagem título. Cowherd restabelece a melodia e ganha o acompanhamento de Walden no sax alto e de Rosenwinkel, que é quem assume o papel principal e retoma o motivo da canção. Ao fundo, Thomas e Blade tem a importante função simbólica de demonstrar os períodos de tranquilidade, no início e no final da canção, cuja parte relata o retorno do filho pródigo, em oposição à parte central, que representa a inquietação traduzida no solo de Butler.

Uma bela e suave melodia é introduzida pelo guitarrista Rosenwinkel em “Stoner Hill”, cujos acordes, acompanhados por Blade na bateria e Thomas no baixo, serão o motivo da canção, no qual tudo se constrói. As entradas de Walden no clarinete baixo e de Cowherd no piano dão continuidade e desenvolvem o tema.

“Season of Changes”, canção que dá nome ao álbum, tem início com o piano solo de Cowherd ditando as bases da canção. A entrada dos demais instrumentos, primeiramente, serve para fazer acompanhamento ao tema iniciado ao piano. Blade na bateria marca a mudança de andamento, que dá mais vivacidade à canção. Cowherd ao piano e Rosenwinkel na guitarra dão o rumo à melodia, enquanto Thomas no baixo e Blade na bateria dão uma precisa marcação do tempo. Os belos solos de sax tenor de Butler e de sax alto de Walden são um dos pontos altos dessa faixa por dar uma cara mais jazzística ao tema progressivo colocado por Cowherd e Rosenwinkel.

“Most Precious One” é na verdade uma longa introdução para a faixa que a sucede, uma vez que o baixo de Thomas tocando sempre a mesma nota tem o acompanhamento do piano de Cowherd fazendo a mesma coisa, até que este desenvolva a melodia, quando ganha o acompanhamento de Blade na bateria. Então, o caminho está prono para a sexta faixa, “Most Precious One (Prodigy)”, que traz Cowherd tocando um Moog e Blade marcando o tempo em sua bateria como se tocasse um rock, enquanto Rosenwinkel completa com um solo viajante em total harmonia com o piano eletrônico. Blade parece ter composto esta canção inspirado na obra do Pink Floyd e de David Gilmour, pois se em outros momentos do álbum ele balançava no limite entre o jazz e o rock progressivo, nesta faixa ele cruzou a fronteira com os dois pés.

“Improvisation” inicia com Walden tocando uma melodia oriental em seu clarinete baixo, quando Cowherd ingressa na canção tocando o pump organ segurando prolongadamente a mesma nota, enquanto muito ao fundo temos o baixo de Thomas tocando a mesma nota. Walden desenvolve o tema inicial e contribui com um belo solo para o álbum, enquanto a canção chega a um crescendo, que se trata, na verdade, de uma introdução para a próxima faixa: “Alpha and Omega”. Como uma continuaçao da canção anteriormente desenvolvida, a atenção se centra sobre o pump organ de Cowherd, tocando como se estivesse em uma igreja, e no lento e misterioso soprar de Walden.

“Omni”, a canção que encerra o álbum, começa com um belo e melodioso dueto entre o sax alto de Walden e o piano de Cowherd, enquanto o baixo de Thomas e a bateria de Blade funcionam como os pés a manter a ave no chão. Nesta bela composição de Blade há espaço para um empolgante dueto entre o sax tenor de Butler e o alto de Walden, além de um solo reflexivo de muita beleza no piano de Cowherd, que dá ponto final a uma adorável canção.

Intrigante, desafiador, mas sobretudo um ótimo álbum. Em alguns momentos, Season of Changes parece como um primeiro passo em direção a algo novo. Se Brian Blade prosseguir trabalhando essa sonoridade, algo diferente pode surgir no mundo do jazz neste princípio de século XXI. Para abril de 2009, Blade promete o lançamento de um álbum novo, porém não tocando bateria, mas fazendo sua estréia como cantor e guitarrista. Resta-nos esperar.

Todos os músicos que participaram do álbum:
Brian Blade: bateria;
Jon Cowherd: piano, pump organ, Moog, Wurlitzer;
Kurt Rosenwinkel: guitarra;
Myron Walden: saxofone alto, clarinete baixo;
Melvin Butler: saxofone tenor;
Chris Thomas: baixo.

Faixas de Season of Changes:
01. Rubylou's Lullaby [Blade] 4:38
02. Return of the Prodigal Son [Cowherd] 8:54
03. Stoner Hill [Blade] 3:19
04. Season of Changes [Cowherd] 12:00
05. Most Precious One [Blade] 2:50
06. Most Precious One (Prodigy) [Blade] 3:11
07. Improvisation [Cowherd, Walden] 3:56
08. Alpha and Omega [Blade] 1:28
09. Omni [Blade] 6:10

Ouça um pouco do álbum no site da gravadora Verve.

Ouça um pouco do álbum pela amazonmp3:


Comprar o álbum ou mp3 downloads?


Veja o vídeo de Brian Blade & The Fellowship Band tocando um trecho de “Return of the Prodigal Son”: