Lançado em 2008 pela gravadora Heads Up, Esperanza é o segundo álbum da baixista e cantora Esperanza Spalding como líder. Nascida em 1984, em Portland, no estado americano de Oregon, Spalding teve contato com o baixo acústico pela primeira vez aos 15 anos de idade e com meses de prática foi considerada um prodígio. Em 2005 já era admitida como instrutora na Faculdade Berklee de Música em Boston. No ano seguinte lançou seu primeiro álbum liderando o seu trio de jazz. Em seu segundo e mais recente trabalho, intitulado Esperanza, Spalding atua com diversas formações instrumentais que abrangem o duo, o trio, o quarteto e o quinteto (se não contarmos as vozes adicionais em algumas faixas), o que permite um panorama multifacetado ao álbum, que conta ainda com a líder cantando em diferentes idiomas: português, inglês, espanhol, além do idioma característico do jazz, o scat singin'. Mesmo para quem não é tão aficionado por vocal jazz, como eu, este álbum é altamente recomendável e pode se tornar algo difícil de parar de ouvir. Descubra o porquê no desenrolar desse texto.
"Ponta de Areia", composição de Milton Nascimento e Fernando Brant, é a faixa de abertura do álbum, revelando desde o início que a concepção de todo o trabalho está em conciliar jazz com um toque de latino-brasilidade. A seção rítmica merece muito do crédito por essa canção ser executada de maneira tão bem sucedida, uma vez que o percussionista Jamey Haddad proporciona o balanço requerido, o baterista Otis Brown marca o tempo sem grandes variações, mas é a sintonia e a harmonia entre o piano de Leo Genovese e o baixo de Esperanza Spalding que faz o favorável diferencial. Há uma complementaridade entre os dois instrumentos que dá uma maior consistência à canção, como pode se perceber tanto na condução rítmica quanto no solo de Genovese. Como se não bastasse tudo isso, ainda há a bela voz adaptável de Spalding, que consegue variar competentemente entre os tons mais graves e os agudos. Cantando em língua portuguesa, Spalding não conseguiu se livrar do sotaque inglês, e curiosamente sua pronúncia remete, por vezes, ao português falado na Europa e não no Brasil.
Em "I Know You Know" o baixo de Spalding deixa bem claro a marcação do tempo, o qual é seguido com precisão por Brown na bateria e Haddad com sua percussão. Cabe ao piano de Genovese fazer a dupla função de acompanhar a seção rítmica em um primeiro momento e, a partir daí, expandir o tema melódico em acompanhamento ao canto de Spalding, enquanto pontua cada verso da composição. O tema da canção é uma mulher que não cansa de declarar o seu amor em um refrão grudento ("You already know/ But I'll sing it again/ I love you babe/ And nothing/ Will take me away/ I know that you know ...") a um homem hesitante e inseguro com o qual já teve um relacionamento no passado. A interpretação vocal de Spalding é cheia de um balanço contagiante que tempera a canção com uma vibração repleta de qualidades.
"Fall In" é uma balada romântica conduzida pelo piano de Genovese tendo unicamente como acompanhamento o canto vocal de Spalding, que por sua vez demonstra muita consistência no uso de sua voz. O refrão ("Don't worry if we fall in love/ We will never touch the ground/ Just fall into a dream"), bem como outras estrofes da letra, revela uma voz apaixonada disposta a convencer (e a se convencer) a viver plenamente o seu amor.
A canção "I Adore You" é ritmicamente levada pela percussão de Haddad em batidas tipicamente afro-latinas combinadas à bateria cheia de swing de Horacio Hernandez, o qual consegue tirar um som mais dançante de seu instrumento, além das vozes adicionais ao canto principal de Spalding, que são: Gretchen Parlato, Thereza Perez e Otis Brown. Apesar de cantada, a canção não tem uma só palavra, pois as vocalizações são de improvisos ao estilo scat singin' latinizado. Destaca-se mais uma vez a complementaridade entre o baixo de Spaldinge o piano de Genovese criando uma unidade consistente tanto quando ambos trazem seus instrumentos para o primeiro plano da canção durante o dueto sem canto, quanto quando fazem o acompanhamento às vozes que dão energia e impulsionam o trabalho.
"Cuerpo y Alma" é a versão traduzida para a língua espanhola de "Body & Soul", composta por Green, Heyman e Sour. Esse standard do jazz começa com uma introdução do baixo de Spalding, que dita o ritmo para a entrada da bateria de Brown e do piano de Genovese. A formação em trio funciona muito bem nesta faixa, porque todos os instrumentos encontram seus espaços, o que proporciona uma sinergia harmônica, tal qual se pode perceber nos momentos em que o baixo de Spalding assume o papel de protagonizar as ações na canção, ou quando o Genovese dedilha o seu piano com leveza e fluidez. Cantando em um espanhol muito bom, Spalding faz uso de um díficil recurso que é segurar as notas agudas prolongando as sílabas tônicas das palavras ao final dos versos. O resultado é um dos momentos mais bonitos do álbum.
A canção "She Got to You" é a mais pop do álbum com o sax alto de Donald Harrison ao estilo smooth pontuando os versos cantados por Spalding. A utilização do sopro no álbum foi introduzida apenas na sexta faixa, mas não foi bem aproveitada, porque não há nenhum momento inspirado do saxofonista nesta canção, afinal, a melodia faz uso apenas de fraseados curtos e repetitivos. Apoiando-se na extensão vocal de Spalding, essa canção parece ter sido produzida para tocar nas rádios FM ou para preencher trilhas sonoras de novelas ou seriados de TV. Talvez tendo percebido como o sax de Harrison foi mal
aproveitado, a baixista já usou outros formatos para o grupo em suas apresentações, como a substituição do saxofone por uma guitarra, o que melhorou consideravelmente a canção. A versão do álbum, no entanto, é dispensável.
"Precious", apesar de também soar um tanto pop, tem uma influência de soul music que a torna muita melhor que a canção anterior. O baixo bem marcado de Spalding, acompanhado de perto pela bateria de Brown, encontra um belo complemento no som cristalino com uma certa vibração do Wurlitzer, uma espécie de piano eletrônico, tocado por Genovese. As vozes adicionais foram todas muito bem colocadas para expressar a emoção de cada parte da canção, passando de um momento mais contemplativo até um ponto mais vibrante.
O baixo pulsante de Spalding é a chave que sustenta "Mela", a oitava faixa do álbum. O canto dessa vez é usado tão somente como um instrumento, uma vez que não há palavras para serem cantadas. A voz de Spalding encontra, em um primeiro momento, um complemento no trompete de Ambrose Akinmusire, que por sua vez em seu primeiro solo já ganha o primeiro plano com uma atuação destacada. A musicalidade brasileira está na base dessa composição que conta com alguns dos melhores solos de baixo de Spalding, bem como com o destacado rigor estilístico de Hernandez na bateria. Certamente é um
dos mais relevantes momentos desse álbum ao agregar o trompete criativo de Akinmusire ao trio base formado pelo baixo, pelo piano e pela bateria.
"Love in Time" é uma balada ao melhor estilo vocal jazz. O baixo marca o tempo e o piano é um mero acompanhante para a voz de Spalding esbanjando uma sensualidade provocadora. Já "Espera" trata da retomada da confiança após a quase perda da esperança cantada com muito balanço por Spalding. A percussão de Haddad, a bateria de Brown e o baixo de Spalding marcam o ritmo com uma batida que em muitos momentos se assemelha à marcação do reggae, porém um pouco mais rápida. Genovese, por sua vez, tocando um Fender Rhodes faz tanto o complemento ao baixo como é o acompanhamento para a voz.
"If That's True" é a única canção totalmente instrumental do álbum. Ao piano Genovese introduz o tema central da canção, que é logo seguido e expandido pelo sax alto de Harrison, enquanto o baixo de Spalding pulsa com intensidade. Em seguida é o trompete de Akinmusire que toma a condução da melodia, até o piano de Genovese passar da função de acompanhamento para o primeiro plano da canção. Em todos os momentos em que os sopros ou o piano ganham o destaque maior durante a execução de seus temas, é o baixo de Spalding que está vivo como um coração a bombear notas musicais para o quinteto, tanto que seu desempenho é fundamental para marcar não apenas o tempo, mas também para reger a entrada dos demais instrumentos, bem como para guiá-los em seus solos.
O álbum encerra com uma belíssima execução de "Samba Em Prelúdio", composição de Vinicius de Moraes e Baden Powell. Do violão fica encarregado Nino Josele, enquanto Spalding canta cada verso em um português perfeito, que impressiona, principalmente se compararmos com a primeira faixa desse álbum. O dueto de baixo e violão e a exuberante interpretação vocal de Spalding fazem dessa canção o momento mais tocante do álbum. Qualquer fã de bossa nova não conseguirá ouvir essa faixa apenas uma vez.
Esperanza Spalding é merecidamente um dos nomes mais destacados da atual cena jazzística ao conciliar a influência da música brasileira e afro-cubana ao seu universo sonoro. Se por um lado sua voz de contralto e suas composições românticas atraem um público não restrito ao jazz, sua performance como baixista já lhe rendeu a nomeação como primeira "Estrela em Ascensão" pela revista DownBeat em 2008. Como demonstrado em Esperanza, Spalding é uma figura importante para entender o jazz dos anos 2000 e do século XXI, portanto ainda muito deveremos ouvir de sua boca e de seu baixo. De minha parte, fico com a esperança de vê-la se desenvolver ainda mais como artista sem abdicar de sua veia jazzística para incorrer em caminhos que conduzem a uma música de qualidade duvidosa aquém de sua capacidade, o que vem a culminar em um pop sem graça, como fez, infelizmente, George Benson no passado.
Todos os músicos que participaram do álbum:
Esperanza Spalding: vocais, baixo;
Leo Genovese: piano, Wurlitzer (7), Rhodes (10);
Jamey Haddad: percussão (1, 2, 4, 6, 10);
Otis Brown: bateria (1, 2, 5, 7, 9, 10, 11), background vocals (4, 7);
Gretchen Parlato: background vocals (1, 4);
Theresa Perez: background vocals (4);
Horacio Hernandez: bateria (4, 6, 8);
Donald Harrison: saxofone alto (6, 11);
Ambrose Akinmusire: trompete (8, 11);
Nino Josele: violão (12).
Faixas de Esperanza:
01. Ponta de Areia [Nascimento, Brant] 5:39
02. I Know You Know [Spalding] 3:46
03. Fall In [Spalding] 3:57
04. I Adore You [Spalding] 7:27
05. Cuerpo y Alma (Body & Soul) [Green, Heyman, Sour] 8:01
06. She Got to You [Spalding] 4:29
07. Precious [Spalding] 4:24
08. Mela [Spalding] 6:57
09. Love in Time [Spalding] 5:47
10. Espera [Spalding] 4:40
11. If That's True [Spalding] 7:33
12. Samba Em Prelúdio [de Moraes, Powell] 5:11
Vídeo com a versão de estúdio de "Ponta de Areia":
Vídeo de apresentação de "Ponta de Areia" no Tim Festival 2008 com participação de Chico Pinheiro:
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Há 8 meses